Resenha: O Sonho de um Homem Ridículo, de Fiódor Dostoiévski | Entre Páginas & Prateleiras

“O Sonho de um Homem Ridículo”, de Fiódor Dostoiévski, um dos maiores escritores da literatura universal, é um conto publicado em 1877; que aborda os temas da responsabilidade moral do indivíduo sobre as próprias imperfeições e sobre o que há de errado no mundo, da experiência do perdão e da dualidade entre o bem e o mal, o qual é inerente ao ser humano.

Por meio do protagonista, que tem uma revelação durante um sonho utópico, Dostoiévski nos confronta com a complexidade moral (de reconhecer o mal como um ato humano) e a luta interna que todos enfrentamos (sobre a dificuldade de assumir a responsabilidade por nossos atos).

Imagem, Fonte: www.planocritico.com

O conto começa com o protagonista anônimo, o qual é o próprio “homem ridículo”, enquanto ele compartilha a sua visão cética sobre o mundo e a humanidade. Ele é um homem de meia-idade, introspectivo e niilista; ou seja, é uma pessoa desiludida com a vida, que acredita não haver sentido em estar vivo, e que todas as pessoas do mundo são tolas.

O homem ridículo está à beira do suicídio. Naquela noite ele caminha para casa já decidido a cometer um suicídio, mas no caminho encontra uma menina indefesa (uma criança) que lhe puxa o braço, pedindo sua ajuda para socorrer sua mãe que está doente. O homem ridículo então empurra a menina, ignorando o seu clamor, e segue em frente com a sua intenção de dar cabo à própria vida.

Nesse meio tempo, ele enfrenta um exame de consciência e mergulha em uma autorreflexão. Percebe que, se tudo é indiferente para ele, o sofrimento da menina é consequente, dado que ela poderia chegar às mesmas conclusões desesperadas que ele próprio está tendo. E esse sentimento de compaixão que brota já faz ele questionar a sua visão niilista.

Ainda assim, chegando em casa, o homem ridículo se senta numa poltrona, pega um revólver, aponta para o coração e adormece. Ele cai no sono e tem um sonho transcendental, onde é levado a um planeta iluminado por uma luz própria e habitado apenas por formas etéreas de vida. Todas as pessoas desse mundo onírico são felizes e se amam, elas se abraçam e dançam. E essa utopia aparentemente perfeita faz o homem ridículo se sentir desconfortável, dando a impressão de que o mundo dele, em comparação a este, foi um paraíso que deu errado.

No entanto, ele também percebe que naquele mundo ninguém se comunica entre si (como se só fosse necessário falar quando se está infeliz). Daí ele sente uma desconexão e começa a forçar uma interação com as pessoas. O homem ridículo tenta se comunicar, sendo que, essa sua atitude vai levando gradativamente aquele mundo ao caos e à frustração. Aquelas pessoas começam a gritar e a se empurrar, atropelando-se, fazendo tudo ficar desesperador. Ele começa a se sentir mais deslocado naquele meio, até como se estivesse em casa; mas também deseja pelo fim da situação.

Até que, no ápice, o homem ridículo finalmente se acorda do sonho. Ele se levanta de sua poltrona (seguro, em sua casa), desiste de se matar e corre atrás da menina que tinha lhe pedido auxílio na rua. Tudo isso porque, no sonho, naquele mundo onírico, ele percebe que representou a serpente do paraíso. Ele representou o elemento da corrupção.

E essa revelação é libertadora porque faz ele compreender que também é diretamente responsável pelas imperfeições e desafios da realidade (do mundo concreto em que vive), em vez de permanecer acreditando em sua própria benevolência, em sua suposta pureza. A revelação o faz entender o mal que há dentro de si. E esse entendimento é o que renova a sua vontade de viver.

Eis a mensagem central do conto: reconhecer e aceitar a própria responsabilidade moral pelos aspectos negativos da vida, e pelo que há de errado no mundo (reconhecendo que podemos causar mal aos outros), pode ser algo profundamente libertador. E isso contrasta com a noção de que o mal são os outros, de que fatores externos são de responsabilidades alheias ─ como a pobreza, as desigualdades, as formas de injustiças, os conflitos armados, a instabilidade política, ou mesmo a influência patológica dos nossos pais ─; e que são os únicos obstáculos para a autorrealização.

 

“O Sonho de um Homem Ridículo” é uma obra literária que explora de modo fascinante o reconhecimento da falha moral no indivíduo, a consciência de sua responsabilidade e de sua busca excessiva por uma validação externa.

Essa discussão, de certa forma, remete à controvérsia teológica entre Agostinho e Pelágio, conhecida como a “polêmica da graça”. Ela explora a ideia de que quando alguém insiste muito em se autoproclamar bom, isso muitas vezes é motivado pela vaidade. Esse tema também é amplamente tratado na literatura cristã, enfatizando que as virtudes não se autopromovem; elas agem discretamente.

Nesse contexto, há anos que esse conto de Dostoiévski vem se destacando nesse debate. Ele que é um mestre em explorar as profundezas da psique humana, e em tecer uma narrativa onírica e filosófica que desafia as concepções convencionais da realidade.

“O Sonho de um Homem Ridículo” é uma leitura essencial para aqueles que, do ponto de vista de uma jornada intelectual e espiritual, buscam pela esperança e por uma redenção.

Através desse conto, você irá refletir sobre a complexidade da condição humana, considerando o valor da imperfeição e da limitação em nossa busca pelo sentido da vida. Você irá encarar as suas próprias imperfeições, questionando a ideia de que somos inerentemente bons, e com isso poderá se revitalizar e buscar uma vida mais autêntica.

A leitura é importante porque, para o autor, é intrínseco ao ser humano o desejo por esperança e redenção, que promove uma vida autêntica e plena, em contraposição à visão niilista de uma existência enfraquecida e desprovida de significado.



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